quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Talvez amargo e doce

Talvez eu seja uma fruta partida
Constelando lembranças de infância.
(Talvez eu seja a larva paquidérmica
talvez eu seja um dia de sol
talvez eu seja um medo qualquer de um barulho que não é do vento.)

Talvez eu seja um braço troncho
tremendo a espera de um beijo.
Ou dedos de um pé sufocado.
(Talvez um medo qualquer de um barulho que não é o vento.)

Talvez eu seja cabelos ainda compridos
dançando em volta de um umbigo.
Talvez eu seja um sorriso macio
talvez eu seja o sono de alguém num sagrado repouso sobre minhas pernas.
(talvez um medo...)

Talvez eu seja esta manhã
(esta mesma, onde as cores ainda despertam).
Talvez eu seja esta primavera
(sem tantas jabuticabas).
Talvez agora
(Talvez medo).

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Impudores

Seus dedos
e seu amor desmedido
estrangulam meu riso.

Meus medos
(e seus desejos cínicos)
estrangulam meus sonhos.

(Veja bem de quantas coisas precisamos pra viver)

Seu hálito venenoso
seu apetite
suas concavidades vorazes
(e nada disso precisa existir no meu universo)
tudo isso
tudo o que vem de você
tudo o que é seu
interrompe subitamente todos os meus fluxos.

Eu nem mesmo sei do que é que precisa uma pessoa pra viver.

Um instante do seu cheiro
dos seus barulhos
estrangulam violentamente um monte de coisas.

(É disso que eu preciso agora.)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Misantropia











Do mundo só sei a palavra...
a palavra presa na garganta.
a garganta aberta, as guelras coladas
o sangue coagulado,
o sufoco.
o silêncio dos índios a morrer de fome em estados inexistentes.
os chacras despertos.
os canais todos abertos.
o corpo.
o gado triste indo morrer em silêncio
neste exato momento
agora.
a vida muda de cada vida submersa.
e o silêncio dos peixes.
sei o ritmo das coisas que acontecem num ritmo sem sentido.
o fetiche de cada instante.
sei cada instante.
do mundo só sei o não saber.
só sei não querer dessas pessoas mesquinhas
o vazio do que tocam quando estão ao meu lado.
ou o silêncio do que tocam quando estão sozinhas.
o nada que são.
seus corações tão sem palavras.
e minha garganta a coagular-se inteira.
minhas guelras secando,
meu corpo sendo limpo e
frito.
e depois digerido.
consumido num ritual tão sem sentido.
tão sem nada haver sentido.
do mundo só sei meu desespero.
meu desamparo.
minha solidão.
do mundo só sei desilusão.
só sei a fome dos outros.
fome por corpos sem ossos.
sem pele, sem gordura.
sem nervos.
sem sangue.
corpos que são devorados o tempo todo
antes mesmo de se perceberem corpos.
vidas que se findam antes mesmo de se perceberem sós
(que da vida só sei a solidão).
e o silêncio de palavras que poderiam ser ditas.
escritas. gritadas. vividas. escutadas.
da vida só sei palavras esquecidas...

desta vida e deste mundo não quero mais saber.
quero a inteireza das pedras,
a infinitude do silêncio.
quero os carinhos do vento.
a verdade da água.
quero calar minhas palavras.
apelos surdos e famintos.
ávidos por mais e mais palavras.
quero nunca mais tanto vazio.
quero nunca mais tanto frio.
quero saciar a fome dos índios.
quero calar as palavras do mundo!
Deste mundo sei tão pouco
desta vida, quase nada.
E, a cada segundo,
quero saber menos.

Ó quanto riso...

A Colombina chegou à casa meio tonta da bebedeira. Cinco da manhã –suspirava pesado o relógio sobre o fogão. Por toda a noite vagara pelas ruas da cidade, embriagando-se com Pierrot, e ao mesmo tempo aguardando alguma aparição do Arlequim, num desespero daqueles de apertar o coração. Sentia o tempo todo uma inquietante angústia por tanto desperdício com maquiagem, perfume e salto alto. Isso sem falar na lingerie, que havia sido colocada com tanta paixão e que agora seria tirada com tanto desprezo. E no desejo, sufocado pela piedade, de apagar de vez da sua vida aquele Pierrot apaixonado. Vontade de esmagá-lo a cada palavra certa que ele proferia, a cada jura de amor que ele desferia, e cuspir-lhe na cara a cada beijo de piedade que ele suplicava! As roupas eram dignas de nojo. Um nojo imenso, que lhe contaminava o próprio corpo, as mãos e os cabelos antes perfumados e agora com o cheiro triste do cigarro e da gordura dos botecos. Um verdadeiro ódio pela maquiagem borrada pela noite, ódio dos brincos e colares arrancados pelos atos de desesperada e voluptuosa compaixão, ódio dos sonhos mortos e já apodrecidos espalhados pelos seios, pelo pescoço, pelo corpo inteiro. Um ódio pelo cheiro do sexo impregnando cada poro, cada gota de suor ressecada, cada lembrança, cada gargalhada gravada na cabeça.
A Colombina sabia que aquela noite havia sido apenas mais uma entre tantas em que se entregava ao prazer desesperado de sentir-se desejada a viva, apenas mais uma noite entregue à carência gulosa e áspera de um homem solitário e desprezível, apenas mais algumas horas de toda a sua vida de flor nascida no aterro, de borboleta pousada na sarjeta, de mulher perdida no mundo frio e sujo dos becos e dos loucos.
E sufocante era o nojo que aquela moça sentia diante de toda aquela beleza que agora manchava seu espelho. E suja era toda aquela poesia feita pelo Pierrot. Sujas todas as palavras, sujos todos os beijos e abraços e sonhos e lágrimas. Sujo era o amor que ela vira surgir naquele homem. Sujo, triste, verdadeiro, cruel, cruel, cruel...
Triste, ainda, era saber que o que lhe trazia todo esse nojo, todo esse desprezo, era justamente um amor nascido tão puro e tão grande, que o pobre Pierrot alimentava em seu coração, destruído em cada pedaço por cada palavra fria, cada riso debochado, cada olhar desprezível lançado por aquela moça para ele tão limpa. Limpa, pura, verdadeira. Mas triste, cruel, cruel, cruel...
Triste era o gosto de cachaça na garganta, triste era sentir o vazio dos sonhos perdidos e mortos. Triste o nojo dos homens, que tomava conta de todo o seu corpo, seus seios deliciosos, sua pele quente e macia, seus lábios corajosos e gulosos. O desejo é triste.
E naquela madrugada cruel e fria, já sem lingerie, sem perfume, sem maquiagem, olhando a cidade ainda escura pela janela, onde certamente vagava pelas ruas amargas um Pierrot desconsolado, sentindo o gosto azedo da cachaça suportada durante a noite, com nojo do próprio cheiro e do próprio gosto, sem esperança, sem amor, sem gosto por nada, a Colombina se preparava para a morte, doce e irresistivelmente certa, que descia pela garganta, dentro de cada pílula piedosa ingerida com água e açúcar.
Mal chegara a casa, após a noitada impiedosa, e jazia, nua, triste e fria. Levava para sempre consigo o amor miserável do Pierrot. E a lua, através da janela aberta, via aquela Colombina morrer, ansiando atormentada um último instante de misericórdia, em que surgisse pela porta um Arlequim que nunca havia de fato existido.

Em Italiano seria melhor

Nesta escuridão infindável esperava ser uma luz. Mas sou apenas eu.

No silêncio inquietante deste universo esperava ser um som.

Mas sou apenas eu.

Afogada em mil saudades, doces e amargas, perdida entre mil vontades, sou apenas eu.

E não há mais poesia, não há mais som, não há mais cor que consigam aliviar o aperto deste coração tão sufocado. A existência é como se nada nunca tivesse existido.

Olhando de perto, todos não passam de efígies sombrias. Tudo é tão eternamente distante; tudo me é tão espantosamente estranho. Inclusive eu, que não sou nada além de mim.

Estranha. Solitária. Silenciosamente corroída pelo tempo, como todo o resto.

Esperava ter a coragem de fazer algum verso.

Mas sou apenas eu.

Esperava ter alguma coragem.

Mas sou apenas eu. Sou apenas eu mesma e não me resta mais ninguém, porque ninguém nunca houve, de fato.

Nus



Entre sonhos e desejos
Entre soluços e gracejos
Meus olhos despem a noite.
Quiseram fossem poesia
Mas são apenas olhos
Engolindo ansiosos as palavras da vida
Escorrendo horas escuras e silenciosas
Lentamente tecendo manhãs mortas
E frias...
Entre ondas e gotas
Gotas...
meus olhos são oceanos...
Entre silêncios e vazios
Meus olhos soam.
E o mundo
o mundo e o tempo
despem-nos violentamente.

Ciclo. Ou: Início. Ou: Ameaço. (Ou: Descompasso)



No claro do dia me calo e me ouço. Espero.
Suspiro, soluço e engasgo com o almoço.
Transponho a tarde. Me mostro.
E na escuridão me troco, me viro do avesso.
Sufôco este da noite, que nem sequer mereço.
Mas caço. E acho.
E me perco, me parto em pedaços.
Explodo.
Engano o cansaço. Num salto me solto.
Invento um som, uma forma, um passo.
Percebo o espelho, me assusto com o soco.
Me despeço dos sonhos, junto os cascos.
E sei o que eu sinto: a solidão é um saco.
E sem sofrer mais que necessito,
me desamasso.


Eta vida besta, meu deus.

Ou:

E a poesia desse momento inunda minha vida inteira.